
Nos dias de hoje em que só se houve falar da crise da indústria discográfica, como é que um artista consegue vender mais de um milhão de discos na primeira semana de lançamento do seu novo disco? A resposta é um bocado complexa, ainda mais quando estamos falando de um rapper como Dwayne Michael Carter Jr. AKA Lil’ Wayne, mas para começo de conversa pode-se dizer que é uma combinação de carisma, letras que metem muito sexo ao barulho, dedicação, bastante trabalho e muita música grátis.
Quem o ouvir pela primeira vez pode pensar que se trata de mais uma daquelas inúmeras vedetas fabricadas pela indústria discográfica que enchem os Tops dos discos mais vendidos um pouco por todo o mundo. Mas quando a chove de f***s e b****s e as inúmeras referências sexuais, machistas e misóginas com que “Weezy” nos bombardeia acaba por destruir todos os pruridos politicamente correctos, descobrimos um artista que se empenha de alma e coração naquilo que faz, capaz do melhor e do pior. Para mim, ele é a prova de que nem sempre o que é popular é mau.
Lil’ Wayne não deixa absolutamente ninguém indiferente: ele é amado por uns e detestado por outros, como ele próprio refere em “Love Me or Hate Me”, uma das cinco músicas que eram para ter sido lançadas juntamente com o seu sexto álbum de estúdio intitulado Tha Carter III mas que acabaram por se espalhar pela Internet muito antes do disco estar sequer terminado. Lil Wayne não se fez rogado e aproveitou a oportunidade para lançar no iTunes e noutras lojas online uma mixtape oficial chamada precisamente The Leak a 18 de Dezembro de 2007.
Este é apenas um exemplo dos inúmeros episódios que, segundo as regras convencionais da indústria discográfica teriam arruinado o desempenho de um disco de “originais” de um artista nas tabelas de vendas, mas que Lil Wayne conseguiu transformar em oportunidades de promoção para gerar ainda mais vendas. O resultado lógico da sua estratégia está à vista: na primeira semana após o seu lançamento a 10 de Junho o Tha Carter III vendeu 1.005.545 cópias nos Estados Unidos. O último álbum a superar a marca de um milhão de cópias comercializadas na semana de estreia tinha sido The Massacre de 50 Cent, com 1,1 milhões de unidades vendidas na semana de estreia em Março de 2005. Desde então, apenas Graduation de Kanye West conseguiu aproximar-se , com 957 mil cópias comercializadas durante a semana de lançamento em Setembro de 2007.
Da minha parte, confesso que até há bem pouco tempo nunca tinha ouvido qualquer música de Lil Wayne. Eu sabia que havia ali qualquer coisa de diferente da maioria das outras vedetas Rap mas ainda não lhe tinha dado atenção. A verdade é que mesmo sem lançar um álbum oficial desde 2005 Wayne transformou-se nos dois últimos anos numa presença regular das listas de melhores discos do ano das “bíblias” da crítica de música. Tudo graças à prodigalidade de mixtapes que o rapper de Nova Orleães lançou neste período, sobretudo Dedication 2 de 2006 lançada em conjunto com DJ Drama e Da Drought 3 de 2007.
Com esta última mixtape composta por dois discos e 29 faixas e com uma duração superior a 100 minutos, Wayne conseguiu a proeza de constar da lista dos melhores discos do ano da Pitchfork (17º lugar), da revista The Wire (22º) e da extinta publicação online Stylus Magazine (4º). No mundo do hip-hop, as mixtapes referem-se a compilações que combinam samples e/ou remisturas de outras músicas com as rimas de um MC em freestyle. Como tal, elas funcionam como veículo promocional para lançar MCs do circuito underground para o mainstream. No início, as mixtapes eram comercializadas sob a forma de CDs e vendidas nas ruas, em lojas de discos independentes ou nos concertos de artistas. Mas com a Internet, elas começaram a ser disponibilizadas sob a forma de downloads. Lil Wayne soube como ninguém aproveitar as mixtapes para gerar buzz e hype junto dos fãs de Rap, bem como da blogosfera, oferecendo downloads inteiramente gratuitos das suas mixtapes.
Longe dos constrangimentos de copyright a que as edições oficiais obrigam, Wayne deu rédea solta à sua liberdade e criatividade artística. Em Da Drought 3, “Weezy” improvisa descaradamente por cima de samples de Beyoncé (”Upgrade U”), Nas (”Black Republican”) e Gnarls Barkley (”Crazy”). Mas as minhas preferidas são mesmo “Ride 4 My Niggas” e “We Taking Over (Remix)”. Em The Drought Is Over 2: Tha Carter 3 Sessions, ele chega mesmo a samplar os Beatles (”Help”) e Prince (”Diamonds & Pearls”).
É também nesta edição que podemos encontrar a fabulosa “I Feel Like Dying” que integra um sample de Karma Ann Swanepoel, uma cantora folk residente na África do Sul que decidiu processar Wayne por causa disso. Mais recentemente, Lil Wayne voltou a ser alvo de outro processo judicial por ter gravado uma versão muito própria de “Playing With Fire” dos Rolling Stones incluída em Tha Carter III. Voltando às mixtapes, o crítico de música Robert Christgau da estação de rádio NPR atribui o sucesso comercial de Tha Carter 3 ao facto de ele ter conseguido inundar a Internet com uma pletora de mixtapes que provocaram um aumento da procura por material original novo que aumentou ainda mais a fasquia em termos de qualidade.
Outra razão que se poderá apontar para o um milhão de discos vendidos foi a colaborações em músicas de outros artistas, como explica o New York Times: desde Enrique Iglesias a Jay-Z, passando por Chris Brown, Wayne foi a todas e aceitou todos os convites, até os mais inusitados. Este espírito colaborativo está também bem vincado em Tha Carter 3 com as participações de Jay-Z (”Mr. Carter”) e Kanye West (”Comfortable” e “Let The Beat Build”), só para citar os nomes mais famosos. Também em termos de produção, o álbum conta com alguns dos maiores profissionais Hip-Hop.
O facto de todas as músicas do disco terem “leakado” para a Internet mais de 10 dias antes da sua estreia comercial não parece ter prejudicado em nada as vendas. O mais provável é que tenha ocorrido exatamente o contrário e que a partilha online tenha apenas servido para fazer chegar a sua música a um maior número de pessoas que de outro modo provavelmente não se teriam interessado pelo trabalho de Wayne a ponto de estarem dispostas a darem dinheiro pelo CD.
Em Abril - mesmo antes da “fuga” - Lil Wayne já era o artista mais popular dos Tops das músicas mais descarregadas das redes de P2P, de acordo com o que Eric Garland, director executivo da Big Champagne, referiu ao NY Times que indica que os fãs que descarregaram as músicas de Lil Wayne fizeram uma média de 10 downloads das suas músicas ao passo que nos outros artistas essa média era apenas de duas:
Isso é representativo da quantidade da sua produção, que é abundante, bem como do nível de envolvimento da sua audiência. Se somos um fã, o mais provável é sermos um fã a sério. E embora as pessoas que gostam de uma música individual não estejam dispostas a gastar dinheiro com esse artista, as pessoas que gostam de 10 músicas estão. Penso que o fenómeno das mixtapes é fabuloso para alimentar a máquina e isto é a essência da indústria da música no século XXI.
É claro que a popularidade de Lil Wayne não adveio apenas da Internet mas também da exposição concedida pelas rádios e por anúncios televisivos pagos pela Universal Music. Outra explicação aponta para o programa “Complete My Album” da loja do iTunes que permitiu que os consumidores que tinham adquirido anteriormente singles individuais do disco lançados antes da data de saída pudessem comprar as restantes músicas a um preço de desconto. Alguns vão mesmo ao ponto de dizer que a Universal Music chegou a comprar ela própria milhares de cópias do disco para aumentar artificialmente as vendas.
O que é certo é que já há muito tempo que um disco não recolhia a unanimidade da crítica e do público. Pessoalmente, ele passou a fazer parte do meu Top 5 de melhores discos deste ano. Apesar do carácter brejeiro e sexista da maioria das letras de “Weezy”, há algo nele que supera tudo isso mas que eu não consigo explicar. É irracional, é ilógico mas é irresistível. A voz de Wayne faz-nos lembrar a mistura de um velho xamã com a de um MC jamaicano de raggamuffin da Jamaica e um pequeno diabo. As inflexões que ele faz, os trejeitos e os truques são inimitáveis. É visceral. É infeccioso. É um vírus sonoro. Se no próximo Tha Carter 4 “Weezy” conseguir eliminar a palha com que ainda nos deparamos aqui e ali nos seus lançamentos, teremos sem dúvida um clássico. Tendo em conta que ele tem “apenas” 25 anos, tudo é possível…
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