segunda-feira, 1 de setembro de 2008

RAp é coisa de NERD

João Xavi

Foi-se o tempo em que as canções do bom e velho RAP (ritmo e poesia, vale a pena lembrar) falavam apenas de pobreza, racismo ou violência policial. As últimas movimentações do cenário trazem à tona novas abordagens e ampliam as fronteiras do estilo que muitas vezes sofre com a repetição.
Pra quem já é chegado no universo dos gibis, Inumanos remete diretamente a uma raça humanóide que ganhou vida nas páginas do comemorado desenhista Stan Lee (também criador dos X-Men, Homem-Aranha, entre outros). No hip hop, Inumanos virou uma sigla - Inteligência Natural União Maior Através de Núcleos Originários do Subterrâneo -, pela qual atende a dupla DJ Babão e MC Aori. A referência ao HQ americano serve como dica pra enxurrada de citações que permeiam as letras e a estética do grupo
oriundo do bairro da Lapa, Rio de Janeiro.
A dupla cometeu em 2005 o disco Volume Dez, uma coleção de composições que mostram como o ambiente do MC, principal influência na escrita, pode ir muito além do bairro onde se vive ou das regiões por onde circula. Em "Monstros L.a.p.a." o MC projeta suas violentas habilidades de rimador em um personagem dos quadrinhos:

"rapper Hank MCoy fera de pêlo azul
minha dentada dói do meu domínio não há recuo
preso entre minhas presas seus ossos se esmagam
preso entre minhas presas sua pele se rasga
minha língua é elástica, minha saliva soda cáustica
de dia mero escriba à noite criatura fantástica"


Hank MCoy, nome do X-Men Fera, é um mutante conhecido pelo contraste entre a aparência bestial e uma inteligência muito acima da média. Imagem perfeita para descrição de um MC chegado a destruir seus oponentes em batalhas de rimas improvisadas.
O ápice dessa estética nerd foi alcançado com o vídeo da música "Polegar Opositor" . O clipe, dirigido por Cadu Macedo, mistura animação e seriados japoneses no melhor estilo Changeman para contar a história de uma invasão protagonizada por seres extraterrestres. Enquanto patos do espaço pousam sobre uma cidade japonesa, provavelmente Tóquio, a letra martela a idéia de civilização:

"Sei que evoluímos pouco pra dois mil anos
Continuamos a mercê de desastres naturais ou de ditadores insanos
Mas talvez alguém ainda tenha planos para o que chamamos de humanidade Talvez o estado permanente de calamidade seja momentâneo
Esqueça o que tem no bolso me mostre o que tem no crânio
É como respirar: um ato espontâneo"


O clipe concorreu - e perdeu para um vídeo do Marcelo D2 - na disputa da MTV. Mas levou o caneco no Hutúz rap festival. Ponto pros Inumanos!
Nem só de cariocas é formado o time de nerds do rap. São Paulo conta com nomes de peso nessa seleção de rimadores peculiares. Um dos pesos mais pesados é o Mamelo Sound System, o grupo se auto-define como "Entidade sônica urbana movida a batidas, rimas & a vida". Um dos principais conceitos operados pelo Mamelo é o afro-futurismo, uma vertente de ficção cientifica com referências à cultura negra. Musicalmente o encontro se dá entre o aparato tecnológico e os tambores afros, o resultado final é a chamada batucada digital.
A música "Assim Falou Sun Ra", do álbum Velha Guarda 22, cita o jazzista doidão em um clima totalmente futurista. Rodrigo Brandão abre a música com o seguinte verso: "O espaço, a fronteira final: essa é a missão da astronave M.
Sound System, surfando prateada pela parte sideral do hemisfério, em stereo. Marte é a próxima parada, camarada."
Mais à frente, Lurdes da Luz emenda: "10-9: há vida além desse planeta e não é preciso que ninguém me prove. 8-7: minhas conquistas, listadas em tópicos, cabem em um disquete. Foi pouco um lugar ao Sol, vou além do Sol, desse quintal, além do virtual, pra real."


O teor nerd é abertamente declarado no refrão de "Manifesto":
"Do Be-bop ao Hip-hop em freqüência dread-lock
Estilo Antipop que renova o seu estoque
Mamelo Sound System Funk tropa de choque
Dropa mais ciência que o Senhor Spok"


Mais do que um grupo de rap o Mamelo se apresenta como um conceito, ou entidade, que caminha entre a boêmia e o universo nerd. No pacote, além dos beats e rimas, é interessante se ligar nos links oferecidos pelas referências que, muitas das vezes, são reveladas no apelo visual que gira em torno do grupo. Fica um rastro de cultura pop em cada passo dado por essa rapaziada.
Por último, mas não menos nerd, temos Fábio Luiz. Conhecido como Parteum, o MC comanda um dos microfones do grupo Mzuri Sana. Além de trabalhar com produção musical (produzir e gravar sozinho muitas de suas músicas) e operar toda parafernália digital que compõe os estúdios contemporâneos, Parteum ainda ataca como designer e videomaker.
Toda essa articulação deixa pra trás a ainda clássica imagem do rapper como uma figura ignorante e/ou limitada a caminhar apenas pelo seu ambiente de origem. A letra de "Dragão Mimado" deixa essa idéia bem clara:


"Eu enfio o mundo inteiro num disquete, abro a sessão e aumento o som fazendo "rap du bom", lutando como Qui-Gon, entenda. A Força está comigo onde quer que eu vá. Numa festa em San Diego ou numa van perto da Arapoá".


Qui-Gon Jinn é um dos Jedies de Guerra nas Estrelas, e a tal Força, o poder que torna os Jedies guerreiros especiais que lutam em defesa de objetivos nobres. Aliás, citar filmes parece ser uma das especialidades de Parteum. Estranho no Ninho, Operação Dragão, Talentoso Ripley, Mágico de Oz e Kill Bill são alguns dos títulos referidos nas letras do paulistano. No campo das artes visuais surge o nome de Van Gogh. Na literatura Neruda, Kafka e Machado de Assis. Tá bom, ou quer mais?
O tal compromisso em retratar a realidade vem sendo dignamente rasgado com a ampliação das fronteiras do real para além do que é vivido pelo MC. Não quero cair nesse papo de evolução, mas o rap dá um passo à frente a partir do momento que, assim como outras formas de expressão artística, abre espaço para a fantasia.
Talvez esteja no refrão de "Força da Sugestão", música do próprio Parteum, a melhor definição para essa boa onda:


"Forma, símbolo, imagem.
Ultrapassando a margem.
Fascinação, viagem. Literatura".

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